História publicada no livro SAGAS DE HERÓIS E CAVALEIROS , MITOLOGIA GERMÂNICA, vol 1, de Martin Beheim-Schwarzbach, editado pela Editora Paz e Terra, tradução de Gisela Eckschmidt do original HELDEN UND RITTERSAGEN – Edição Verlag Karl Ueberreuter, Wien.
Apesar de ser o filho mais velho de um rei, o gigante Vadoso não se tomou rei. Deram-lhe esse nome porque cresceu tanto que nos trechos dos rios onde os outros tinham de atravessar a nado ele apenas atravessava a vau, ou seja, vadeava. Assim todos o chamavam de Vadoso, e por fim já ninguém sabia qual o seu verdadeiro nome.
Era uma pessoa tão contemplativa e sossegada que seu pai, o rei Wiking, decidiu que quem herdaria a coroa não seria Vadoso, apesar de ser o mais velho, mas sim um de seus irmãos. Vadoso não se importou, pois fazia pouco caso das honras e fadigas da dignidade real. Preferiu casar-se e ter filhos, viver quieto e tranquilo como proprietário de fazendas. Vodoso teve três filhos, que receberam os nomes de Wieland, Eigel e Helferich.
Cada um desses filhos tinha um dom especial. Helferich conhecia profundamente as ervas e as forças da natureza e tornou-se um importante médico. Eigel tinha um olho tão penetrante quanto o do falcão e atirava com o arco e a flecha como nenhum outro em seu país, de forma que ninguém conseguia competir com ele como caçador. Wieland dedicou-se ao martelo e à bigorna. Era um ferreiro nato: desde pequeno já era capaz de fazer armas e uma porção de outras peças, e a coisa de que mais gostava era ficar ao lado do fogo da forja.
Vadoso mandou os três filhos para serem aprendizes junto aos melhores mestres, de acordo com os dons de cada um.
Wieland foi ser aprendiz de dois famosos anões, Elberich e Goldmar, os mais capazes e habilidosos ferreiros de todo o mundo e que moravam numa caverna montanhosa, através da qual tinha acesso aos metais do interior da terra, ao ouro e ao ferro, acumulando tesouros que ninguém jamais havia visto.
Mas eram anões cobiçosos, que só queriam aumentar os seus tesouros, sem usá-los para algo de bom.
Wieland era o aprendiz mais habilidoso que os anões jamais tiveram. Em pouco tempo nada mais tinham a ensinar-lhe, e depois de transcorridos os seus anos de aprendizado ele sabia tudo tão bem quanto os próprios anões. Por isso eles não queriam que ele fosse embora, pois lhes prestava excelentes serviços. Quando Vadoso veio buscar o seu filho, Elberich lhe disse:
– Está tudo bem, mas ele ainda precisa aprender mais alguma coisa. Se você deixar seu filho mais um ano conosco, ele será um mestre perfeito e será tão valioso para nós que devolveremos o dinheiro que você nos deu para ele aprender o ofício. Que acha disso?
O pai de Wieland não gostou muito da idéia e resistiu em concordar, mas o rapaz gostava tanto do trabalho na forjaria dos anões que não queria ir embora. Além disso, estava obcecado com a idéia de aprender cada vez mais. Assim insistiu com o pai para ficar mais um ano, até que Vadoso concordou. Então um dos anões, Goldmar, disse:
– Não se esqueça de um velho costume do nosso ofício, que provavelmente você conhece.
– Não, não sei de nada – disse Vadoso. – Que costume é esse?
– Se você não buscar o seu filho no dia combinado, ou seja, exatamente daqui há um ano, e nem um dia a mais, ele terá de ficar conosco a vida inteira e trabalhar para nós.
– Eis um costume muito estranho – disse Vadoso, franzindo a testa. – Nunca ouvi falar disso.
– É uma lei milenar entre os ferreiros – explicou Elberich. – É um oficio austero e sagrado e possui leis rígidas e sagradas.
Vadoso acabou aceitando essa explicação, mas não a levou muito a sério. Só quando voltava para casa é que lhe pareceu que aqueles dois anões tinham em vista alguma maldade.
Enquanto isso, Wieland continuou trabalhando muito satisfeito na bigorna. Aprendeu ainda a ourivesaria e teve a oportunidade de conhecer o lugar onde os anões guardavam os seus tesouros. Ali viu um anel que fora forjado nos tempos antigos por Mime, o experiente ferreiro com quem Siegfried de Xanten, o matador de dragões, aprendera a forjar sua própria espada, a espada Balmung. Esse anel tinha o poder de escravizar pelo amor aquele a quem o portador do anel escolhesse.
Depois de Wieland ter passado mais um ano como aprendiz dos anões, Vadoso já se encontrava diante da caverna havia três dias, para não chegar tarde demais, mas não conseguia encontrar a entrada. Os anões haviam-na fechado com pedras. Durante todo o dia Vadoso procurou-a e, apesar de estar ouvindo das profundezas da terra o retinir e o bater do martelo, não conseguia encontrar a entrada. Então deitou-se ao lado de uma rocha para passar a noite ali e não percebeu que estava bem perto da entrada. Os anões haviam tramado um plano para matar Vadoso e ficar com o aprendiz para o resto da vida. Desprenderam, pois, uma rocha logo acima do lugar onde Vadoso dormia, e a rocha esmagou o velho, matando-o.
No dia seguinte Wieland acordou bem cedo para procurar seu pai e teve de retirar as pedras para sair. Viu então o que acontecera e logo compreendeu que os anões eram os responsáveis por aquele ato cruel. Depois, quando percebeu como os dois trocavam olhares e mal conseguiam conter-se de alegria pelo crime que haviam cometido, tomou uma decisão inabalável. Não conseguindo mais controlar o ódio, empunhou a espada que estava forjando, cortou a cabeça dos dois anões e deixou-os ali banhados em sangue. Wieland entrou na caverna e deparou com o cavalo Cintilo, um animal branco como a neve e fantasticamente veloz e que de nunca havia visto antes porque os anões mantinham-no escondido para, em caso de perigo, poderem fugir. Em seguida encheu um saco com pedras preciosas, pegou o anel mágico que Mime havia forjado, colocou tudo sobre o cavalo e foi embora para casa.
Dai em diante passou a viver numa das fazendas de seu falecido pai, juntamente com seus irmãos. Cada um dos irmãos encontrou uma mulher, mas Wieland não se casou. Interessava-se apenas pela arte de ferreiro. A primeira coisa que fez foram cem anéis iguais ao anel mágico, a coisa mais preciosa que possuia. Assim ninguém conseguiria distinguir o anel verdadeiro dos falsos. Isso feito, pendurou-os todos num arame.
Sabia que a noticia de que possuía um anel mágico espalhara-se misteriosamente por toda parte e que os ladrões, e mesmo os mais poderosos reis, invejavam-no e cobiçavam esse tesouro. Apenas Wieland sabia distinguir o verdadeiro anel entre os cem outros falsos.
Nessa época o povo dos niaros, que vivia bem ao norte, era governado por um rei chamado Nidung. Mais tarde os niaros extinguiram-se e deles não sobreviveu ninguém. O rei Nidung tinha uma linda filha chamada Batilde e dois filhos menores. Nidung amava tanto a filha que colocava aos seus pés todas as riquezas do mundo e todo e qualquer desejo da filha ele tentava satisfazer. Ela ouvira falar no anel mágico do ferreiro Wieland, que morava em outro país, pois Wieland era tão famoso como ferreiro quanto o seu misterioso anel. Batilde queria o anel e diariamente molestava o pai com seu pedido.
– Está bem – dizia o rei Nidung. – Vou-lhe trazer o anel, mesmo se tiver que roubá-lo. Mas como vou reconhecer o anel, se Wieland colocou cem anéis idênticos no mesmo arame?
Ela sabia como agir: deu-lhe um instrumento cujas cordas testavam os sons, pois ao entrarem em contato com uma peça mágica emitiam um som diferente. Herdara esse instrumento de sua mãe, e esta da mãe dela.
O rei Nidung achou que o plano daria certo. Reuniu pois um grupo de guerreiros bem armados e seguiu com eles para a ilha onde Wieland morava com seus irmãos. Quando viram os saqueadores chegando, os três irmãos chamaram os servos e houve uma luta sangrenta. Mas, como os guerreiros de Nidung eram muito superiores em número e em armas, os irmãos e os servos fugiram ainda com vida para uma floresta das imediações e ali esperaram até que os ladrões fossem embora.
O assalto de Nidung tinha um único objetivo: o anel mágico. As outras jóias e pedras preciosas não lhe interessavam, pois as tinha até demais. Entre os cento e um anéis enfiados no arame, encontrou sem problemas o anel mágico graças ao instrumento que Batilde lhe havia dado. No dia seguinte, quando os irmão retornaram, ficaram muito surpresos, pois todos os seus bens permaneciam intocados. Estranharam muito a expedição de saque na qual as espadas foram desembainhadas e sangue derramado, mas nada fora levado.
Mal Wieland imaginara o que havia acontecido, sua suspeita foi confirmada: seu anel mágico desaparecera. Era o que o rei dos niaros queria. Caiu em profunda prostração, pois era uma coisa maravilhosa e misteriosa a posse daquele anel. À tristeza veio juntar-se um anseio ardente por algo que ele não sabia o que era. Uma intensa angústia arrebatou-o com violência, e ele só sabia que tinha de partir, para onde e por quê, não podia dizer.
Era o amor por aquela que agora era a dona do anel que o atingira e que o mantinha cativo. Construiu um barco suficientemente grande para transportar seu cavalo Cintilo, atravessou o mar e chegou às costas do país dos niaros, onde Nidung era rei e Batilde usava o anel no dedo. Ali foi preso pelos guardas costeiros e levado à presença do rei, que não o reconheceu, pois durante o saque não o vira. O rei interrogou-o, querendo saber quem era, de onde vinha e para onde ia. Wieland disse que era ferreiro e se chamava Goldbrand, que havia partido em busca da felicidade e suas únicas posses eram seu oficio e seu cavalo Cíntilo.
Então Nidung propôs-lhe ficar no seu reino e trabalhar como ajudante de seu ferreiro, Amilias. Se mostrasse perícia, com toda a certeza encontraria ali a sua felicidade. Nidung não sabia que aquele estrangeiro só tinha uma coisa em mente:
conquistar a mulher que usava o anel – a quem até então nem havia visto. Wieland aceitou.
Um dia, quando enfim viu Batilde com seu anel no dedo, reconheceu o que acontecia com seu coração: estava apaixonado por aquela moça, que aos seus olhos era a mais bela e adorável de todas as mulheres. Mas ela não se importou com ele.
Amilias, que era também um ferreiro muito talentoso, logo sentiu inveja de Wieland e tentou rebaixá-lo, dando-lhe serviços degradantes. Mas Wieland sabia como transformar lâminas de espadas totalmente enferrujadas e quebradiças em ferros inteiriços e brilhantes.
Certa vez o rei gostou tanto de um trabalho realizado por Wieland que lhe disse:
– Apenas um ferreiro consegue fazer esse trabalho: o ferreiro Wieland. Dizem que ninguém o iguala – então você, Goldbrand, é o único que pode equiparar-se a ele.
Isso acirrou a inveja de Amilias e logo começaram as brigas, uma ofensa aqui, outra ali, até que o próprio rei resolveu interferir e propôs uma competição. Amilias deveria fabricar um capacete tão resistente que nenhuma espada tivesse condições de fendê-lo, e Goldbrand uma espada que partisse o mais forte capacete. Os dois adversário concordaram. Se o capacete de Amilias resistisse à espada de Goldbrand, este morreria, mas se a espada de Goldbrand rachasse o capacete de Amilias, era este que perderia a vida. Os dois ferreiros poderiam trabalhar em suas peças durante um ano.
Amilias logo começou a trabalhar e não largou o fole nem de dia e nem de noite. Wieland não se preocupou, e começou a trabalhar apenas um dia antes da prova. Quando terminou a espada, o rei disse que queria vê-la.
– É uma bela espada. Só não entendo como conseguiu fazê-la em tão pouco tempo. Pois disseram-me que você ficou fazendo outras coisas ou então ficou por aí à toa sem fazer nada.
– Acho – retrucou Wieland – que elaa ainda não está boa. Vamos experimenta-la. – Foi até um riacho e jogou um punhado de algodão na água, que foi levado pela correnteza até o fio da lâmina da espada. O algodão foi cortado ao meio, mas por uma fração de segundo parou em frente à lâmina.
Então Wieland jogou a espada num monte de ferro-velho e disse:
– Preciso fazer outra.
– Uma outra espada? E em tão pouco tempo? Meu bom homem, você deve estar maluco – disse o rei, muito espantado.
Wieland deu de ombros e começou a trabalhar.
No dia da competição lá estavam os dois, Amilias e Wieland, ambos de bom humor e muito seguros de si, gritando bravatas e ofensas um ao outro, segundo os antigos costumes.
Então Amilias colocou seu capacete, posicionou-se diante do adversário e disse irônico:
– Pode bater com força, seu fanfarrão. Você vai ver!
Wieland baixou a lâmina da espada sobre o capacete de Amilias e, mesmo sem usar toda a sua força, atravessou-o como se fosse feito de madeira e enterrou a espada na cabeça do adversário, que caiu morto. O rei e a corte acompanharam a competição estarrecidos e também surpresos, e por fim todos bateram palmas entusiásticas. Batilde também estava lá, mas não demonstrou nenhum interesse.
Wieland ficou aflito e disse, muito desgostoso:
– Sinto muito que a sua inveja lhe tenha custado a morte.
– Que obra magnifica é essa espada! Só o próprio Wieland teria feito uma igual a essa! – exclamou Nidung.
– É, pode ser – retrucou Wieland – e voltou-se novamente com paixão para Batilde, que sem lhe conceder sequer um olhar e um sorriso, retirou-se. O coração de Wieland confrangeu-se de dor.
Essa espada é digna de um rei, desejaria muito possuía – disse Nidung. Wieland percebeu que lhe era dada uma oportunidade de vingar-se, negando-se a atender ao pedido do rei.
Pode levá-la como presente, rei Nidung, mas dê-me um tempo para fazer a bainha e ornar o cabo.
Wieland não sentia rancor contra Nidung, apesar de ele ter roubado seu anel por causa de Batilde. O rei ficou muito satisfeito e disse:
Fique aqui conosco, Goldbrand. Já percebi que você não pode ser outro senão Wieland.
essas palavras Wieland estremeceu, mas teve de revelar sua verdadeira identidade. Nidung continuou:
– Fique aqui, mestre Wieland, e não mais como meu ferreiro, mas como meu hóspede. Sente-se à minha mesa ao lado de meus guerreiros e beba, divirta-se e participe das caçadas como se fosse o rei de um país amigo. Colocarei à sua disposição os metais mais nobres e quantos aprendizes e ajudantes você necessitar para criar o que quiser.
E assim aconteceu. Daí em diante Wieland viveu entre os nobres e os homens mais honrados da corte de Nidung, mas ainda assim Batilde não lhe concedia nem mesmo um olhar. A paixão o devorava e ele sentia-se muito infeliz.
Não suspeitava quanta desgraça ainda o esperava.
Certo dia um exército de um país vizinho atacou as fronteiras do reino de Nidung e ele partiu com seus homens para combatê-lo. Também Wieland seguia ao lado do rei, montado em seu cavalo Cintilo. Nidung apressara-se tanto na hora da partida que se esqueceu de uma pedra preciosa, sua pedra de sorte. Quando percebeu que estava sem ela, foi tomado por terrível sensação de impotência. Além disso, acabara de chegar um mensageiro com a noticia de que o exército inimigo era muito superior ao de Nidung. Sem a sua pedra da sorte o rei não tinha coragem de prosseguir, mas a batalha entre os dois exércitos era eminente. Reuniu os seus seguidores mais fiéis e disse muito preocupado:
– Àquele que me trouxer a pedra antes de iniciar-se a batalha darei qualquer coisa que desejar, mesmo a mão de minha filha!
No mesmo instante arrependeu-se de ter dito isso, mas não podia voltar atrás, pois Wieland já se oferecera para ir buscar a pedra. O rei zombou da proposta de Wieland, pois não acreditou que fosse capaz de tal façanha. Regin, um dos mais fiéis homens do rei, que também tinha esperanças de casar-se com Batilde, riu-se de Wieland.
– Se ele conseguir isso, então o ferreiro Wieland deve ter aprendido a voar, e que eu saiba isto não faz parte do aprendizado dos ferreiros!
Wieland confiava em seu maravilhoso cavalo. Saltou para a sela e partiu, e de fato Cintilo comprovou que era descendente do cavalo Sleipnir, pertencente ao próprio deus Wotan. Cavalgou com a rapidez do vento e em pouquíssimo tempo chegou ao castelo de Nidung. Wieland pegou a pedra e retornou com a mesma velocidade.
Mas pouco antes de chegar ao acampamento do rei teve de enfrentar um obstáculo. Regin, acompanhado de alguns guerreiros, interceptou-o e quis obrigá-lo a dar-lhe a pedra em troca de muito dinheiro. Mas Wieland apenas riu na cara do adversário, pois estava muito perto de conseguir o que tanto almejava.
Então Regin e seus guerreiros atacaram Wieland, mas este conhecia o manejo das armas tão bem como seu oficio de ferreiro, cortou a cabeça do traiçoeiro homem e mesmo assim ainda conseguiu chegar ao acampamento real horas antes do inicio da batalha.
O rei estava amargamente arrependido de ter prometido a mão de sua filha, e quando soube que Wieland havia matado Regin percebeu que isso era um bom motivo para quebrar sua promessa.
– Assassino! – gritou para o atônito Wieland. – Você matou ardilosamente o meu mais fiel companheiro! Há de pagar por isso! Um assassino não terá a mão de minha filha! Que os céus me poupem essa desgraça! Suma-se daqui, homem, e nunca mais apareça na minha frente… – E continuou gritando c xingando Wieland, depois de guardar a sua pedra de sorte.
No começo Wieland ficou sem fala, atônito com o que ouvia, mas depois o ódio dominou-o e ele gritou:
– Cão miserável, isso é o que você é. Não honra a palavra dada! Que seus inimigos o façam em pedaços amanhã! Nunca mais você me verá!
Subiu para a sela de seu fiel cavalo e foi embora, cego de ódio, pois agora a realização de seu desejo parecia impossível.
Mas o anseio por aquela que usava o anel não cessava de atormentá-lo. Dias e noites vagava pelas florestas do pais dos niaros, chegando até as longínquas fronteiras das terras vizinhas. Não conseguia pensar em outra coisa senão em Batilde, de tal maneira que seu juízo começou a ficar perturbado. Já não sabia sequer por onde cavalgava. Tramava planos para raptar Batilde à força, depois de matar Nidung e todos os nobres da corte, planos que ficavam só na fantasia, pois não tinha condições de levá-los adiante. Nem ao menos sabia como terminara a batalha e se Nidung ainda estava vivo. Batilde era cuidadosamente protegida e ele não passava de um homem solitário a quem ninguém ajudava.
Entrementes, os guerreiros de Nidung venceram a batalha, pois o exército inimigo não se mostrara tão forte como os mensageiros haviam informado e em pouco tempo foram obrigados a bater em retirada. Quando Nidung voltou, mandou seus homens percorrerem o pais inteiro atrás de Wieland, pois no fundo temia o ferreiro.
Um dia Wieland chegou defronte de sua antiga forjaria e ali, tomado por grande tristeza c cansaço, entrou e deitou-se na sua antiga cama, esquecendo-se de apagar a tocha. Seu desânimo era tal que já nem se lembrava de tomar as menores precauções.
Os esbirros do rei encontraram-no, e mais de dez homens caíram sobre ele, amarraram-no com correntes e levaram-no à presença do rei. Desesperado, Wieland bradou-lhe:
– Mate-me, rei infame! Você nem merece ser chamado de rei! Peço-lhe que me mate, não quero mais viver.
– Nada disso! – sibilou o malvado rei. – Você continuará trabalhando para mim, como ferreiro é muito útil.
– Nunca mais fugirá daqui. – Havia imaginado uma vingança cruel pelos desaforos que Wieland lhe lançara em rosto.
O prisioneiro foi levado para uma ilha solitária perto da costa e ali cortaram-lhe os tendões dos pés para que não pudesse mais fugir. Assim mutilado, o ferreiro recebeu uma velha choupana como oficina e todas as ferramentas para realizar os trabalhos que o rei lhe ordenava. Mesmo Batilde ficou estarrecida com a crueldade de seu pai, e quando pensava no destino do ferreiro doía-lhe o coração, pois sabia que ele sofria daquela maneira por sua causa.
O rei tentou trazer para suas cavalariças o maravilhoso cavalo Cíntilo, mas não o conseguiu. O animal, que Wieland amarrara do lado de fora quando chegara à sua antiga forjaria, havia desaparecido. Soltara-se, fugira como um vendaval e nunca mais foi encontrado, apesar de buscas infindáveis. Alguns diziam ter ouvido seus altos relinchos como o som de mais de mil trombetas enquanto ele desaparecia com seus cascos trovejantes, outros diziam que ele se jogara na arrebentação junto à praia e imediatamente desaparecera no meio das ondas espumantes.
Wieland agora queria continuar vivo para vingar-se do cruel rei, e assim parecia haver aceitado sua triste sina, executando com muito escrúpulo os trabalhos que lhe eram solicitados. Primeiro construiu um par de muletas, pois quem sabe trabalhar com ferro também conhece a madeira, e desse modo conseguia locomover-se com bastante dificuldade. As dores atormentavam-no muito, mas suportou-as com galhardia.
Queria viver para consumar sua vingança. Lentamente, as idéias começaram a brotar-lhe na cabeça e assim seu plano foi ganhando forma.
Uma vez, quando ainda morava com seus irmãos, conseguira fazer uns arames finíssimos, de tanto malhá-lo pacientemente num ferro. Eram tão finos quanto os fios de uma teia de aranha, e com eles Wieland construíra um ninho de passarinho que de tão perfeito iludiu um par de pássaros, que ali botaram seus ovos. Então Eigel, o arqueiro infalível, empunhou um arco e uma flecha e acertou de longe os três ovos que estavam no ninho. Com pena dos pássaros, Helferich, o médico, pegara os três ovos e juntara-os com uma pomada curativa de forma tão perfeita que já não se via um único arranhão nas cascas, e os pássaros continuaram chocando os ovos até os filhotes nascerem.
Wieland lembrou-se desse lato e então lhe veio uma idéia. Que aconteceria se forjasse uma infinidade de penas de finíssimo arame e depois construísse um par de asas? Pôs-se a trabalhar e em pouco tempo forjou a primeira pena. Na sua choupana não faltavam metais: restos enferrujados estavam jogados por todos os cantos, e ele transformou tudo em finíssimos fios de arame, martelando e limando todos os dias. Além disso executava os pedidos do rei para que ninguém suspeitasse de nada.
Assim trabalhou anos seguidos, pois uma obra como essa, que homem nenhum até então tivera coragem de realizar, precisava de tempo para ser feita. Naturalmente ele havia ouvido falar do lendário homem da antiga Grécia que construíra asas e voara, mas esse homem havia usado penas de pássaros colando-as com cera, e quando subiu às alturas e se aproximou do sol a cera se derreteu e ele despencou lamentavelmente, espatifando-se no chão ou morrendo afogado no mar. Isso não aconteceria com Wieland.
Quando terminou as plumagens, escondeu-as debaixo de um monte de ferro-velho e assim chegou o dia de sua vingança. Vieram visita-lo dois rapazinhos, filhos do rei. Queriam ver o trabalho de Wieland. Não lhe disseram quem eram, mas Wieland logo o descobriu. Eram tão curiosos quanto cobiçosos: queriam ver tudo e também levar muitas coisas, e Wieland, o coxo, não podia impedir que levassem o que quisessem. Os meninos também sabiam que na sua arca havia preciosidades, as quais o ferreiro deveria retrabalhar, mas não as mostrou aos meninos.
Então eles exigiram que Wieland fizesse pontas para suas flechas.
– Só posso fazer o que o rei me ordena – disse ele -, e também não posso mostrar-lhes nada, senão serei cruelmente castigado.
Eles responderam que o pai não precisava saber de nada, e então Wieland certificou-se de que eram filhos do rei.
– Se vocês são os príncipes – disse ele -, não lhes posso recusar um pedido, mas só o farei em segredo. Por isso voltem outro dia sem que ninguém saiba de nada, senão terei de pagar amargamente e ai não haverá nem jóias nem pontas de flechas.
Depois acrescentou:
– Se vocês vierem e não contarem nada a ninguém, vou mostrar-lhes algo que ninguém nunca viu.
E assim despertou a curiosidade dos meninos.
Eles prometeram vir e já na manhã seguinte, ao alvorecer, lá estavam de volta, sem que ninguém soubesse de nada. Wieland abriu a pesada tampa da grande arca de onde havia retirado todo o conteúdo, e quando eles se abaixaram para ver o interior, Wieland disse-lhes:
– Vocês têm de olhar mais de perto.
E foi o que fizeram.
Então o ferreiro deixou cair a pesada tampa sobre suas cabeças, esmagando-as.
No palácio real ouviram-se lamentos e prantos porque os dois meninos haviam desaparecido. Foram procurados nas florestas, na praia e nos rochedos, mas tudo foi inútil. Ninguém imaginava que pudessem estar mortos na ilha, dentro da arca do ferreiro.
Passaram-se meses. Wieland pegou suas plumagens, uniu e amarrou as penas com muita arte. Enquanto isso os corpos dos dois meninos foram apodrecendo, até restarem apenas os ossos. Tenebrosos pensamentos de vingança passavam pela cabeça do ferreiro.
Certo dia, o rei Nidung recebeu uma delegação de convidados de um país vizinho que assinariam um tratado de paz.
Ordenou a Wieland que fabricasse umas taças do material e do jeito que ele quisesse, mas deviam ser tão originais que nunca ninguém tivesse visto iguais. Queria vangloriar-se com a habilidade de seu ferreiro. Wieland transformou as ossadas dos meninos em taças e ornou-as artisticamente com ouro e âmbar. Eram realmente taças como iguais ninguém jamais vira. Wieland enviou-as ao rei e ele bebeu nelas juntamente com seus convidados, sem desconfiar de nada.
Pouco tempo depois Batilde deixou cair o anel no chão e o anel ficou trincado. Foi como se abrisse uma fenda em seu coração. Uma mágoa profunda e inexplicável apoderou-se dela.
Mandou, pois, uma criada com o anel até a ilha, onde Wieland deveria conserta-lo. Ninguém mais era capaz disso.
Será que ela havia esquecido que o anel pertencia a Wieland e que lhe fora roubado? A criada voltou com o recado de que Batilde deveria ir busca-lo pessoalmente, porque Wieland precisava experimentá-lo no seu dedo. Com o coração palpitante, o ferreiro começou o seu trabalho. O anel queimava-lhe os dedos.
Batilde veio. Estava trêmula de inquietação, pois o anel, que lhe dava poder, não estava no seu dedo. Olhou para o ferreiro, que havia envelhecido e estava à sua frente de muletas. Suas terríveis feridas estavam curadas, mas mesmo assim ele se locomovia com muita dificuldade. Olhou de alto a baixo a mulher a quem ainda continuava desejando.
– Então, dê-me o anel – disse Batilde.
– Aqui está – respondeu Wieland. – Olhe bem para ele. Você ousou conservá-lo em seu poder por muito tempo, mas ele é meu. De agora em diante sou eu quem vai usá-lo, e você vai sentir o que isso significa.
Ela olhou-o pálida e transtornada. Sentiu aumentarem as dores em seu coração. Wieland colocou o anel em seu dedo e a dor tornou-se mais aguda. Ela não sabia o que fazer nem o que falar. Lágrimas encheram-lhe os olhos e seu orgulho se abateu. Ela estendeu a mão a Wieland e pediu-lhe:
– Devolva-me o anel.
– Não, você tem que sentir o seu poder. O anel é meu.
– Vá e sinta o seu poder.
Ela correu para fora da choupana até a margem onde estava o bote com o servo que a havia trazido, e este pensou: “Por que será que ela está chorando, essa mulher tão orgulhosa?”.
Exultante, Wieland voltou a trabalhar na sua estranha obra. Logo chegou o dia em que experimentou suas asas: primeiro subiu aos ares timidamente, mas depois ganhou coragem e voou à vontade, seguro de sua vitória. Agora estava liberto das algemas que seus pés coxos significavam para ele.
Sentia-se mais livre e mais veloz do que os melhores corredores ou do que um garboso corcel. Voltou à oficina, reuniu as melhores pedras, colocou-as em saquinhos e amarrou-as em torno do corpo.
Faltava apenas completar sua vingança.
Pálida e abatida, Batilde perambulava pelo castelo de seu pai, no qual desde o desaparecimento dos meninos reinava a tristeza e o luto. Pensava no homem mutilado, no mágico ferreiro ao qual fora feita uma injustiça tão cruel e que agora era dono de seu coração. Tentou conversar com o pai sobre ele, primeiro timidamente, depois com insistência, perguntando se já não era tempo de tirá-lo da ilha e conceder-lhe sua antiga posição, como era justo e de direito, pois ele havia sido tratado com muita perversidade. Começou então a falar de injustiça e provocou a ira do rei.
Vieram também muitos pretendentes, mas ela rejeitou a todos. Isso fez com que o rei ficasse mais enraivecido e levou-o a suspeitar o que estava acontecendo com a filha. Então, decidiu mandar alguns servos até a ilha para matarem o ferreiro.
Mas no dia em que deu essa infame ordem e dois servos armados embarcaram num bote, o rei ouviu chamarem seu nome do lado de fora do castelo.
Foi até a janela e espiou para fora, mas como a noite já havia descido não conseguiu ver ninguém. Será que se enganara? Estaria imaginando coisas? Foi deitar-se, mas não conseguiu dormir. Passado algum tempo, ouviu novamente seu nome sendo chamado do lado de fora. A lua aparecera atrás das nuvens e inundou a muralha e as ameias do castelo com sua luz prateada. De novo o rei ouviu o chamado:
– Rei Nidung, acorde!
– Quem está me chamando? – perguntou o rei, debruçando-se à janela. Então viu na ameia mais alta da muralha, bem diante de seu quarto, para lá do pátio do castelo, uma figura que se assemelhava a um imponente pássaro. O rei estremeceu, pois era como se fosse um mensageiro de outro mundo, um arauto da desgraça. O luar se derramava sobre a plumagem do pássaro, produzindo um cintilar metálico.
– Quem está me chamando? – perguntou Nidung novamente. – Quem está aí em cima? Um fantasma?
Sua voz tremia de medo.
– Ouça-me, rei traiçoeiro! Nem rei você merece ser chamado! Um homem que não mantém sua palavra! Infiel! Infame!
Estarrecido, o rei reconheceu Wieland nessas palavras.
– Como conseguiu chegar aí? – perguntou, recobrando coragem. – Se você é Wieland, o ferreiro, desça e venha falar comigo frente a frente. Por acaso você sabe voar?
– Sim – tornou Wieland -, e estou livre do seu poder: minha arte triunfou sobre ele! Ouça, pois, o que tenho a lhe dizer. Eu o amaldiçôo, homem desgraçado e indigno. Você me roubou, assaltou-me como um vil pirata. Prometeu a mão de sua filha e não honrou a palavra dada. Mutilou-me e me manteve preso como escravo. Tudo isso você fez comigo, e pensou que poderia continuar impune. Pois ouça bem como me vinguei de você. Eu matei seus dois filhos, fiz taças com suas ossadas e você bebeu nelas. Mas agora você também perdeu a sua filha. A dor da morte está em seu coração, pois ela me pertence, assim como o anel que você me roubou. Sua filha vai abandoná-lo e vagar pelo mundo até me encontrar.
-De nada adiantará você casá-la. E agora chame os seus bes-teiros e guerreiros para arremes-sarem os dardos e me alcançarem aqui nas alturas. Eu o amaldiçôo,
rei infame!
Depois destas últimas palavras, Nidung saiu correndo, louco de rai-va, e chamou os guardas, os bes-teiros e o arremessadores de dar-dos para derrubarem a figura que sobrepairava lá em cima, homem, pássaro ou fantasma, e o colocas-sem aos seus pés como uma presa de caça. Os soldados, apesar de tremerem de medo, atiraram contra o homem emplumado, mas este, batendo as poderosas asas metá-licas, logo ficou fora do alcance das flechas e dos dardos. Ouvia-se a-penas seu riso sardônico, mas dele mesmo não se via nem a sombra.
Batilde postou-se ao lado do pai. Seu rosto estava banhado de lágrimas, e, aflita, ela esquadrinhou o céu noturno.
Muito tempo depois ainda ouviu a gargalhada que lhe cortava o coração. Desde esse momento o rei Nidung tornou-se um homem alquebrado.
Exultante, Wieland elevou-se nas alturas. Estava livre de toda trama, humilhação e desgraça. O que nenhum homem nunca conseguira fazer, ele o realizou, com sua arte e perícia.
Voou sobre a terra e o mar. Dei-xou-se levar pelo pelos ares, a-prendeu a reconhecer as correntes de ar, as fortes lufadas de vento, as calmarias e as tempestades e sabia como adaptar-se a elas.
Pousou então sobre a beira de um rochedo junto ao mar, para descansar durante a noite. Ao alvorecer subiu novamente às alturas e, tal como as gaivotas, voou quase sem bater as asas, seguro da direção que o levaria de volta a sua terra.
Com que assombro seus irmãos, as mulheres e as crianças não receberam aquele que havia tanto tempo julgavam perdido! Não demorou muito e Helferich, o médico, devolveu aos maltratados pés de seu irmão, a poder de pomadas e ataduras, as forças que eles haviam perdido, de forma que Wieland logo começou a andar como antes. Já não era jovem, queria apenas paz e tranquilidade. Nada mais o atraia para longe. Dedicou-se apenas ao seu ofício, a arte de forjar o ouro, a prata e o ferro, Muitas vezes pensava em Batilde, a quem tanto amara.
Quando seus pensamentos eram tomados pela imagem dela, sentia uma doce lembrança, ora muito intensa, ora totalmente desvanecida.
Certo dia uma mulher que pare-cia muito fatigada surgiu no cami-nho que levava à casa de Wieland. Sua cabeça estava coberta e ela trazia urna trouxa debaixo do bra-ço. Percebia-se que andara muito tempo e por ásperos caminhos. Aproximando-se, ela retirou o lenço da cabeça e Wieland reconheceu-a: era Batilde, a orgujhosa e inacessível filha do rei Nidung.
– Sou eu, Wieland – disse ela. – Não me reconhece? Vejo que ainda está usando o meu anel. Sei que é seu mas ele também me pertence. Ele prende meu coração com algemas como uma vez prendeu o seu, e assim nos prende um ao outro. Suplico-lhe, deixe-me usá-lo para que o seu coração volte para mim. Acredite, não é um desejo maldoso. Se o seu coração voltar para mim, serei sua para sempre.
Wieland olhou-a pensativo. Ficou muito Comovido ao vê-la diante de si como urna pedinte. Ela continuou:
– Perdoe o que o meu pai lhe fez. Ele está morto e seu reino já não existe. Nossos inimigos nos atacaram e me levaram como prisioneira, mas consegui fugir. Por muito tempo vaguei pelo mundo, até chegar aqui. Faça de mim o que quiser, mate-me ou aceite-me ao seu lado e deixe-me servi-lo. Exausta, ela deixou-se cair aos pés de Wieland. Confuso, ele ajoelhou-se ao lado dela e afastou-lhe da testa o desgrenhado cabelo. Percebeu então que ela havia envelhecido tal como ele, mas continuava bela. Enternecido com sua humildade e desamparo, trouxe-lhe um copo de vinho para ela fortalecer-se. Enquanto ela bebia, Wieland tirou o anel de seu dedo e colocou-o no dela. Sentiu que seu antigo amor não desaparecera. Também sentiu como a felicidade lhe inundava o coração. Tomou-a nos braços e levou-a para casa.
Desde então viveram felizes até o resto de seus dias. As asas que Wieland construíra enferrujaram-se, pois eram feitas de arame finissimo, e não levaram mais ninguém pelos ares.
Fim